domingo, 2 de fevereiro de 2014

Rio de Janeiro: sauna de meditação e pedaladas em Copacabana

Minha ida à cidade maravilhosa seria pontual. Bilhetes de ida e de volta comprados antecipadamente e roteiro rígido. Sequer haveria chance de eu ter uma visão do Cristo, o Redentor. Seguiria, como fiz, no dia 22/1, do Galeão à Novo Rio, onde peguei o executivo Rio-Arcozelo, desembarcando duas horas depois no terminal rodoviário de Miguel Pereira. Na descida do ônibus, identifiquei de pronto alguns alternativos com mochilas e vestimentas ripongas, provavelmente meus futuros colegas na sala (ou sauna) de meditação do Centro Dhamma Santi. Eu estava talvez mais invisível para eles, pois havia abolido há mais tempo o estilo mochileira. 

Nunca havia estado antes em terras cariocas, o que às vezes me constrangia um pouco quando indagavam: “Mas você não conhece o Rio?”. No íntimo, quase sempre surgia uma reação malcriada que eu continha: “Não. E daí?” Mas por insistência de uma amiga acabei enfim indo ao Rio, neste janeiro, pela primeira vez. Porque teve uma boa experiência no Centro Vipassana, ela considerou que eu poderia gostar também de lá. Incontáveis vezes, pressionou com as pontas de todos os dedos das mãos meu peito, afirmando, muito mais convicta do que eu: “Você precisa ir para o Vipassana! Você precisa se salvar de você mesma!” 

Mas não pude atender o convite insistente e benevolente de imediato. Pois conciliar a ida a outro estado para meditar por dez dias, quando se tem marido e três filhos, pressupõe uma logística apropriada. E a época de preparação para o início do ano letivo me exigiu deixar bem encaminhadas as compras de materiais escolares. Me organizei relativamente bem para uma ascendente em Virgem e, na saída de Salvador para o Rio, o máximo que consegui dizer ao maridão foi: “Te vira aí com as crianças... Ah, e só me ligue se for urgente!” Eu estava mesmo precisando de um tempo só para mim. E o melhor é que ele, mesmo inicialmente tendo tentado me dissuadir da ideia, carinhosamente entendeu minha necessidade e comprou meus bilhetes aéreos com as milhas acumuladas no cartão de crédito. 

Há um semestre eu me preparava internamente para aprender a técnica de meditação vipassana. Minha amiga havia tecido mil elogios ao curso, afinal já havia participado dele duas vezes. Disse que passara a meditar todos os dias pela manhã “por necessidade, não por disciplina”, que o treinamento instalara nela uma espécie de “chip” que a fazia ver a vida de outro ponto e que estava mais feliz aprendendo a dominar a própria mente, segundo ela “uma excelente escrava”. Mas também chegou a tecer algumas afirmações duvidosas: “Se eu não consegui aprender vipassana em dois retiros, imagina se você vai aprender em um!? (...) Dormi nas palestras algumas vezes, preciso ir de novo para escutar o que Goenka diz...” Mesmo assim, decidi ir. 

Antes de me inscrever, tomei o cuidado de ler as regras de convivência divulgadas no site do centro e considerei que seria capaz de cumpri-las. Mas, entre elas, algumas me soavam mais difíceis, entre elas não falar com os outros participantes durante todo o curso, nem por contato visual ou gestos. Era o Nobre Silêncio, um dos princípios a serem observados durante o retiro. 

Éramos também orientados a andar de cabeça baixa para evitar distrações e não matar os animais que interceptassem nosso caminho, conforme prega a filosofia budista. Por isso, em cada ambiente coletivo havia um “kit salva inseto”: uma vasilha plástica na qual cabia no máximo um sapo de tamanho médio e uma folha de papel plastificada onde se lia o nome do objeto. A técnica consistia em capturar o animal com a vasilha, deslizá-la em seguida sobre a folha plástica até deixá-lo preso, para então soltá-lo de novo na natureza exuberante do centro, localizado no meio de uma mata rodeada de montanhas. Infelizmente, não podíamos conhecer nenhum pedacinho além das inúmeras placas indicando “Limite”. Essa era também uma das regras. 

Outra norma era entregar logo na entrada os aparelhos eletrônicos, máquinas fotográficas, celulares, carteiras e documentos para a guarda dos responsáveis pelo centro durante toda a estada do aluno. Se precisassem falar conosco, havia um telefone no centro que os alunos deveriam divulgar antecipadamente para suas famílias. De qualquer forma, celulares naquele lugar não funcionavam. Deveríamos nos desconectar do mundo exterior para empreender uma viagem interior. 

Mas eu não era propriamente uma neófita em técnicas de meditação. Já havia frequentado por pelo menos três anos a Self-Realization Fellowship, em Salvador, onde cheguei a trabalhar como auxiliar da professora na escolinha de meditação para crianças. E havia também feito um retiro de dez dias no Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu (ES), em 1999, bem mais interessante que o retiro no Dhamma Santi por vários motivos: podíamos falar com os demais participantes durante os intervalos; não havia segregação entre homens e mulheres, a não ser nos alojamentos; os períodos de meditação zazen (meditação sentada) eram bem mais curtos, embora não exigissem menor esforço ou concentração mental; podíamos treinar a concentração enquanto trabalhávamos na cozinha ou na limpeza das áreas comuns, incluindo o banheiro; não precisávamos entregar nenhum pertence para a guarda dos monges; havia deliciosos banhos de ofurô e podíamos circular pelo mosteiro livremente nas horas de descanso para apreciar e até fotografar a beleza do local. O mosteiro cobrava uma taxa pelo curso de zazen, o que para mim não é nada incompatível com a filosofia budista, uma vez que há um custo para receber os estudantes. 


Com um dos monges e o grupo de estudantes de meditação zazen


Diante da paisagem inspiradora do Mosteiro Zen Morro da Vargem 

Mas há alguns anos eu não sentava na posição de lótus. E como estava num nível de estresse em que não conseguia simplesmente ficar parada e derramava sem parar pelo rosto alguns mililitros de suor diariamente, resolvi tentar. “A meditação vipassana pode me auxiliar!”, pensei. E fui para lá, mesmo correndo o risco de aguçar de novo as dores na coluna, que há muito não me incomodavam. 

Minha condição física era basicamente a de uma portadora de duas protusões discais na lombar, uma epicondilite no cotovelo esquerdo e uma tendinite no tornozelo direito. Já havia tratado tudo isso com fisioterapia e pilates, mas “elas” ainda estavam lá. E me surpreendeu que não tivessem indagado em nenhum momento quais as minhas condições físicas para enfrentar uma maratona de 10 horas diárias de meditação durante 10 dias, ou seja, 100 horas sentada em almofadinhas e banquinhos duros ou encostada à parede, com autorização prévia do professor. As únicas restrições à participação no curso relativas à saúde eram debilidade física acentuada e transtornos mentais. 

Claro que minhas dores ressuscitaram. E com força. A começar por uma enxaqueca terrível, no primeiro dia, provocada pela abstinência de cafeína no desjejum. As trocas constantes de posição em busca de um ponto mais confortável para meditar competiam também constantemente com minha concentração na técnica ensinada. Para completar o desconforto, fazia um calor de quase 40 graus no Rio de Janeiro. Na sala de meditação, mesmo com todas as janelas abertas e protegidas por telas para evitar a entrada de insetos que nos distraíssem, não havia nenhum recurso para amenizar o calor (ventiladores, por exemplo) e nenhuma brisa corria em nosso socorro. Resultado: meu corpo inteiro virou uma goteira de suor. 

Eu ainda tinha de prestar muita atenção para não esticar os pés na direção do professor ou de outros alunos, tarefa árdua se se considerar que eu habitava a almofada número 33, exatamente na direção do professor, e havia muitas outras mulheres diante de mim. Por quê? O professor que conduziu o curso me explicou que, durante a meditação, as impurezas são eliminadas pelas extremidades, principalmente os pés, e faz parte da etiqueta das salas de meditação não esticar os pés na direção dos outros, principalmente do professor, que está ali doando seu amor para os alunos. 

O professor merece um parágrafo à parte. Pensei que ele conduziria as orientações para a meditação e as palestras, o que não aconteceu. Entrava na sala de meditação de modo furtivo por uma porta lateral, de modo que quando eu percebia a presença dele já estava imóvel sobre um pequeno altar branco onde à direita dele havia um ipod. Assim que sentava na posição de lótus impecável, cobria as pernas com um pano branco. Constantemente, remexia a boca, parecendo mastigar algo, o que deduzi ser cravo, pelo hálito dele. Percebi isso no dia em que cheguei mais perto dele para meditar e fazer perguntas. 

Não senti compaixão no olhar dele nem o amor que dizia ter pelos alunos. Ao contrário, percebi os olhos dele me fuzilando quando estiquei meu dedão do pé na direção dele, enquanto encontrava posição melhor para meditar. Minha confiança no processo também ficou abalada quando uma de minhas colegas de quarto revelou - depois de termos quebrado o pacto de silêncio, no segundo dia do curso - ter visto o professor dormindo algumas vezes durante a meditação. E ele não estava também ali todo o tempo conosco. Havia horas em que meditávamos sozinhos na sauna, quer dizer, sala de meditação. 

Quando ele estava presente, limitava-se a ligar com o controle remoto o ipod e deixar falar o sistematizador da técnica, S. N. Goenka. Só se ouvia a voz do professor poucas vezes por dia: quando anunciava entre alguns blocos de meditação “um breve intervalo de cinco minutos” com carregado sotaque norte-americano ou quando, ao final das 10 horas de meditação, em torno das nove da noite, quando todos estávamos exaustos, colocava-se à disposição daqueles que quisessem fazer perguntas. Aproveitei a sessão de perguntas no primeiro e no terceiro dias: no primeiro, pedi para mudar de lugar para ter mais conforto e ele me permitiu ficar encostada à parede; no terceiro, deixei claro que não ficaria no curso, caso as dores continuassem. Ele apenas disse: “O vipassana não é físico”. Fosse como fosse, a técnica exigia muito do meu corpo. E encarei aquele segundo momento como um anúncio de minha despedida do curso. 


Os cinco minutos de intervalo entre as meditações eram o tempo que tínhamos para esticar as pernas, alongar a coluna, beber água, fazer xixi e/ou etc. Após o café e o almoço, havia intervalos maiores de uma hora. As filas eram, em geral, enormes na porta do banheiro. Éramos 50 mulheres para quatro baias com vasos sanitários com privacidade mínima. Não duvido que esse possa ter sido um dos motivos de minha prisão de ventre de quatro dias, que descobri também incomodar os servidores naquele retiro. 

Os servidores são os que já fizeram pelo menos um curso completo e voluntariamente trabalham cozinhando para os demais estudantes. Tatiana, uma das servidoras, tentou me incentivar a permanecer no curso: “Olha, é assim mesmo. Sentir dor é normal. Você faz esses alongamentos (mostrou algumas posições de yoga, enquanto falava)... Daí a alguns dias, suas couraças musculares vão se abrir e tudo melhora!”. Não sei se estava exatamente em busca de abrir minhas couraças, além do mais sem qualquer assistência terapêutica profissional por perto. 


Tudo tinha de ser feito com muita calma no centro, para não perturbar ou distrair os demais. Até mesmo as caminhadas até a fila do banheiro nos intervalos deveriam ser comedidas e silenciosas. Mas um dia não me contive e apressei o passo, quase corri, para chegar mais à frente na fila do banheiro. Não me incomodei com os outros naquele momento, mas com a possibilidade nada remota de urinar nas calças. E se pisoteei alguma formiga naquela disparada, foi assassinato culposo, como o que cometi na noite do segundo dia do curso, quando acordei com um calombo enorme na perna esquerda e um formigão morto em meu lençol. Mas se eu tivesse sido importunada por pernilongos ou baratas, certamente não observaria a norma. 


Por outro lado, lembro de ter sentido simpatia por uma lagartixinha preta que estava no fundo do copo 1B, destinado a meu uso durante o curso, cuja numeração era a mesma da cama que ocupei naqueles quatro dias. Mas lavei bem o copo antes de usá-lo, claro. Também achei bonitinho o calango gordo que se escondia toda vez que eu chegava perto da cortina de palha ao lado da porta de nosso quarto. 

E o sapo com que uma de minhas companheiras de cela se assustou também era um amor. Eu estava ficando tão zen naqueles dias que ele me pareceu quase um príncipe comedor de insetos. Lembro que me aproximei dele para resgatar o outro pé do tênis de minha amiga, enquanto ela controlava a respiração ofegante a alguns metros do animal, após o susto que levou ao percebê-lo escondido debaixo de um dos tênis escorados na parede do lado de fora do quarto. 


Mas o que mais me surpreendeu foi minha relação com as aranhas. No corredor do alojamento feminino mais próximo da sala de meditação, havia pelo menos meia dúzia delas, de todos os quilates, dependuradas em suas teias reluzentes para os insetos. Lembro de ter ficado realmente tensa quando tinha de lavar os pratos e talheres que utilizava, depois de pegar mais uma fila em silêncio. Do telhado acima da pia central do refeitório, pendia um aranhão barrigudo. Temia que despencasse a qualquer momento direto em minha cabeça. Mas depois do temporal com raios e trovões, no segundo dia do curso, a teia desapareceu e até senti saudade da criatura. 

O temporal também deixou como sequela uma noite sem energia elétrica, mas com direito à luz da lua ainda cheia, velas à vontade, lanternas e luzes de emergência. Nesse dia, tive uma súbita iluminação, ou revelação, sei lá como denominar o que senti a respeito daquele lugar e daquele momento. 


Éramos quatro mulheres no mesmo quarto, é bom explicar antes, o que em meu entender já representava um boicote à proposta do nobre silêncio. Uma das meninas já tinha saído na tarde do segundo dia sem dar tchau, provavelmente porque não tinha aguentado ficar sem fumar. Ela mesma me contara, antes de começar a valer a regra do silêncio, que não sabia se chegaria ao fim do curso por causa do vício. Uma das regras era não consumir intoxicantes no centro, mas ela levou cigarro e fumou escondido atrás do quarto. 

A saída súbita dela foi o estopim de nosso movimento pela libertação. Quando vi a parte de cima do beliche vazia, olhei para a companheira que dormia na cama de baixo e com gestos perguntei se a menina tinha ido embora. A colega confirmou com a cabeça. Naquele momento, chegou ao quarto a segunda companheira, a farmacêutica que me salvara das dores, no final do terceiro dia, com 500mg de analgésico manipulado por ela. Ela nos viu conversando e lembrou o respeito ao silêncio. Mas também não se conteve e entrou na conversa. 

Conjecturamos, naquela noite, os porquês da saída da ocupante da cama 1C, lembrando que na véspera a loirona de óculos escuros do quarto 3 também havia se mandado, depois de ter tentado meditar encostada na parede, no banquinho duro e, por último, na cadeira plástica branca. Soube depois pela gerente que a loira havia alegado três hérnias de disco para conseguir a alforria. 

Quebrado o silêncio, conversamos sobre nossas impressões a respeito do curso e descobrimos que nenhuma de nós estava feliz ali. Seria para não compartilharmos nossas dores que não podíamos trocar ideias ali dentro? Comentamos sobre nossos motivos de estarmos ali, as dez longas horas de meditação sem meditar direito e as palestras e orientações dadas durante o curso. 

Todos os dias, escutávamos a voz de Goenka nos indicando o que devíamos fazer, em inglês. Em seguida, um locutor de belíssima voz traduzia em miúdos as tarefas. A gravação tinha muitos ruídos de pessoas tossindo ao fundo, o que em si já era uma distração. Outras vezes, trazia a voz de Goenka entoando cânticos em pali, língua antiga usada por Sidarta Gautama para sistematizar seus ensinamentos budistas, sem qualquer tradução posterior. 

Combinados ao calor e às dores lombares que já migravam para minhas pernas, os cânticos pareciam ladainhas intermináveis e ininteligíveis que, ao final, deveriam ser arrematadas por um triplo “Sadhu” respondido em coro pelos alunos. O termo é uma espécie de “Amém” naquela língua. Mas como dizer amém de forma convicta sem saber a quê? 

A única palestra que não consegui escutar muito bem foi a do terceiro dia, porque tive de levantar e sair da sala por causa das fortes dores lombares. Segundo o que consegui registrar, até ali estávamos nos preparando para receber as orientações para praticar a meditação vipassana. Do primeiro ao terceiro dia, o treinamento consistia em observar a respiração de forma concentrada em uma reduzida região, especificamente o triângulo cuja base inferior era o lábio superior e o vértice o ponto entre as narinas. 

Observávamos de olhos fechados e coluna ereta o ar entrando e saindo pelas narinas, “assim como entra, assim como sai”, pela narina esquerda, pela direita, por ambas simultaneamente. Depois observávamos sensações associadas àquela região: ardência, cócegas, calor, pressão, vibração, qualquer uma que pudéssemos nomear. 

Em todas as palestras que escutei, havia elementos do budismo, sistematizados a partir de explicações sobre a melhor forma de o ser humano harmonizar-se com o Dhamma (Natureza). Goenka falava da importância de termos concentração mental e boas práticas para chegarmos ao nosso objetivo final: a iluminação. Ou seja, há um fundo filosófico e religioso que sustenta o ensino da prática, assim como ela é ensinada dentro de uma forma ritualística que pressupõe uma rígida rotina divulgada no próprio site do centro. 

Na segunda noite, elogiei também a primeira e a segunda palestras de Goenka. “São ensinamentos importantes para a vida”, ponderei. Mas também perguntei às meninas se elas lembravam que, ao final da primeira palestra, o locutor da voz macia dizia, em nome de Goenka, que estávamos ali após termos assinado um papel, que seria normal sentirmos dores de cabeça ou no corpo após o esforço do treinamento de meditação e que estávamos em “uma prisão”. 

Sim, esse era o termo mencionado na palestra. E era como eu também me sentia ali, desde o primeiro dia: uma prisioneira voluntária. Essa revelação veio acompanhada da projeção da imagem do estrado da cama superior do beliche, enquanto a amiga que dormia abaixo dela apontava para o teto sua lanterna acesa. A visão só foi possível porque a cama de cima estava vaga e a colega do andar de baixo havia encostado o colchão da cama superior contra a parede para não aspirar o mofo e piorar a rinite alérgica dela. 

As analogias com o cárcere não paravam de borbulhar em meus mapas mentais. Foi quando percebi que não estava preparada para receber aquele treinamento, a não ser que excluísse a possibilidade de examinar a forma de condução de tudo aquilo. Meu objetivo final naquele curso era minha libertação daquela condição de aprisionamento que já se ensaiava. Não queria contaminar as meninas com minhas questões, mas a verdade é que nenhuma delas estava aguentando aquilo ali. 

Não bastasse o treinamento em si exaustivo, havia o irritante sino trinado pela baixinha de cabelinho curto todos os dias, às quatro da manhã, na porta de nosso quarto. Se não déssemos o mínimo sinal de que estávamos despertas, ela estacionava na porta com batidas ritmadas. A gerente, que tocava o sino nos outros momentos do dia, com o mesmo objetivo de chamar os alunos para a sauna de meditação, chegou ao cúmulo de tilintar o bendito perto da cabeça de uma das meninas, que dormia profundamente. A garota acordou assustada com o barulho e a gerente pediu com aquela voz adocicada: “Calma, calma... Fica tranquila!” 

Na hora de comer, algumas cenas me distraíam. Havia estudantes que esperavam bater o sino que anunciava o almoço nas escadas que davam acesso ao refeitório, em especial uma old student que usava um chapéu de abas enormes e andava com a cabeça pendendo para um lado. E olha que a quantidade de comida parecia atender bem todas nós, embora uma de minhas companheiras tenha ficado sem se servir de arroz integral, salada e farofa, no dia em que decidiu tomar banho antes de almoçar. Sobraram apenas o refogado de abobrinha, que estava bom, e um feijão mulatinho sem gosto, segundo ela. Não se pode reclamar da comida do retiro, se se considerar que os servidores não são cozinheiros profissionais e estávamos ali de graça, uma vez que não eram cobradas taxas por nossa permanência no local. Apenas sugeriam doações de valor não estipulado aos que concluíssem o curso de 10 dias. 

Mas o mingau de aveia com canela e sal, sem leite nem açúcar, servido todos os dias em que lá permaneci, merece um comentário à parte. Ele não era ruim, se misturado à granola sem açúcar e à ameixa cozida com passas. Mas era um pirão espesso e pegajoso que dava trabalho até para desgrudar da concha com que nos servíamos, o que de novo me levava à imagem mental de um ambiente carcerário, ainda que eu também considerasse, naquele momento, que minhas imagens poderiam ser também projeções de meu estado interior. 

Mas se o objetivo era comer pouco para conseguir meditar mais, o que nos era servido estava de bom tamanho. Ocupava provavelmente apenas ¾ do estômago, segundo Goenka aconselhava aos meditadores, e ainda auxiliava aqueles que, como eu, precisam emagrecer. Uma das meninas, a mais robusta das alunas daquela edição do curso, chegou a contar para uma de minhas companheiras de cela que estava ali pela segunda vez porque emagrecia muito nos retiros. 

Eu consegui eliminar 4kg em 4 dias. E trago como herança do retiro a lição de que podemos sobreviver comendo pouco. Mas a expectativa de diminuir 10kg em 10 dias, se continuasse naquele ritmo, não foi o bastante para anular minha posição firme de sair daquele lugar o mais rápido possível. A crise de coluna foi a gota d’água adicionada à saudade imensa que eu sentia de minha família, de meu colchão, de minha liberdade de ir, vir e falar. 

No quarto dia do curso, não levantei para meditar, às 4h30. As meninas ainda tentaram, mas às 5h30 estavam de volta ao quarto. Foi quando anunciei a elas: “Vou embora hoje!” Então, elaboramos o plano de libertação. Eu falaria primeiro com a gerente, depois elas. Uma delas, que tinha ido ao centro de carona com a irmã, pediria o carro emprestado na condição de retornar no dia 2/2 para pegá-la. 

Minhas duas companheiras de jornada eram da capital carioca, o que facilitou bastante a empreitada. Uma residia em Campo Grande e a outra em Copacabana. Ambas me convidaram para passar a noite na casa delas, pois ainda teria de viabilizar a troca do bilhete de volta para Salvador. Para nós, estava tudo certo. Mas, mesmo na saída do centro, tivemos de exercitar mais nossa paciência. 

A gerente não nos liberou tão facilmente. Estava cumprindo um papel, é certo, mas insistentemente tentava nos dissuadir da ideia de abandonar o curso sem termos chegado a entrar na aula do vipassana, programada a partir do quarto dia. 

Eu disse: “Estou sentindo dores fortes, não vou aguentar o esquema de 10 horas de meditação por dia sentada!” 

A gerente: “A gente pode te oferecer uma bolsa de água quente...” 

Eu, sorrindo, quase irônica: “Não precisa, ontem tomei analgésico para dormir!” 

Ela: “Mas você precisa pedir autorização ao professor para sair...” 

Eu, já visivelmente irritada: “Não, já falei com ele ontem à noite e comuniquei que, se minhas dores continuassem, eu sairia do curso.” 

Ela: “É preciso falar com o professor e ele só pode lhe atender ao meio-dia”. 

Detalhe importante: era domingo e meio-dia era o horário do último ônibus que saía para a capital. 

(Silêncio) 

Ela: “Sentir dor é normal, faz parte do processo... Não são dores físicas, são tensões...” 

Eu, de novo, desta vez ameaçadora: “O que quer que você me diga, não vai me fazer mudar minha posição. Vou para casa e vou agora...” 

Ela, irritantemente calma: “Mas você não pode sair agora, pode distrair os outros... Eu te peço, não arrume as malas...” 

(Silêncio de novo, combinado a minha respiração já ofegante) 

Ela: “O vipassana é um treinamento de persistência...” 

Eu: “Ok, se persistência para vocês é ficar sofrendo de dores, então eu não me importo de não parecer persistente segundo o conceito de vocês...” 

Ela: “Você tem como ir?” 

Eu, decidida: “Tenho, sim. Vamos todas as três no carro da irmã de Claudia”. 

Estava tão irritada com aquela conversa toda, que acabei revelando nosso plano. Houve ainda mais trocas de palavras entre nós e os pedidos de silêncio dela, mesmo quando eu estava calada, o que me fez bufar agressiva: “Ah, isso aqui tá ficando muito chato...”, ao que ela me respondeu taxativa: “São as regras do lugar!” Mas ela me ouviu com bastante atenção e me pareceu até amorosa e compassiva. Mas só se deu por vencida após escutar meu argumento final: “Olha, Letícia, eu estou com saudade de minha família...” 


As meninas também enfrentaram alguma dificuldade para sair: ponderações e argumentos similares. No total, cerca de uma hora de conversas. Mas tiraram de letra. E não tivemos dificuldades para reaver nossos pertences, que foram devidamente entregues. Despedimo-nos e agradecemos à gerente por tudo. Uma de minhas companheiras pediu o número da conta corrente do centro para fazer uma doação depois. Em seguida, de sorriso no rosto novamente, arrumamos nossas bagagens no carro da irmã de Claudia e saímos do centro. 

Na cancela, tiramos uma foto para registrar nossa breve estada lá. Pegamos estrada rumo ao Rio, mas erramos o caminho e entramos numa propriedade privada, onde conseguimos pegar acerolas maduras pela janela do carro. Logo depois, acertamos o passo e seguimos rumo a Campo Grande. Estava trazendo na bagagem duas novas amigas e uma sensação de liberdade renovada como há muito eu não sentia. 


Eu e Shenia, felizes por nos vermos livres das rígidas rotinas do curso 

Passei o domingo e a segunda no Rio. Na chegada, fomos recepcionadas com um peixe e saladas maravilhosas preparadas por Fabiana, amiga de Claudia. O acolhimento ímpar das duas me fez refletir como há gente legal nesse mundo. Elas ainda me proporcionaram um tour de carro com vista para a orla da cidade. Depois, seguimos para a casa de Shenia e Samara, onde dormi apenas uma noite. 

Não vi muita coisa do Rio, mas na segunda pela manhã eu e Shenia percorremos 12 km de bike de Copacabana ao mirante da Niemeyer, de onde se avistam as praias dos famosos - Leblon e Arpoador – e as dos anônimos, sem vergonha de mostrar os corpos de todas as formas e tamanhos – Copacabana e Ipanema. O Rio é de uma beleza luminosa de arder os olhos. 

O percurso foi suficiente para perceber que, assim como em Salvador, no Rio a bicicleta ainda não é respeitada pelos carros e os pedestres ainda não tomam o cuidado de deixar as ciclofaixas e ciclovias só para as bikes e outros meios suaves, como patins e skates. Mas gostei do trajeto, do sal e do sol no rosto, que com meu suor escorrendo faziam arder tanto os olhos a ponto de toda aquela luminosidade se tornar quase um incômodo para mim. 

Encontrei-me também com Drummond e, por ironia, com Caymmi, as estátuas, posando como de praxe ao lado deles para um clique. E ainda estive com a amiga querida Andrea, que não via desde que se mudara para o Rio, há dois anos, para cursar o doutorado na UFRJ. Para arrematar o passeio, tomei banho de mar e percebi como as águas de Copacabana têm tanto lixo quanto as do Porto da Barra, em Salvador. 


Peguei Drummond de óculos na orla de Copacabana!



E, por ironia, saí da Bahia para encontrar Caymmi no Rio! 

No final do dia, depois de ter almoçado num restaurante japa a quilo com Shenia, assisti “A era do gelo 4” na TV 3D da casa dela e, às 18h, segui com mala e cuia para a orla novamente, para pegar o ônibus que me deixaria no Galeão. Peguei o vôo Gol 1972, ano de meu nascimento, rumo a Salvador. E a mais forte imagem que trago do Rio pude captar dentro do frescão: de qualquer ponto em que estejamos, podemos avistar o Cristo Redentor, de braços abertos. 

Em Salvador, reencontros, abraços, beijos. E a proposta de meditar em atividade. Andando, comendo, estudando, escrevendo... aqui e agora! Sem dores nas costas nem silêncio forçado. E, o que é melhor, livre para esticar as pernas e apontar os dedões dos pés para a direção que eu quiser. 



Texto: Nisia Rizzo de Azevedo (DRT/BA 1847) 
Fotos do Rio de Janeiro: Shenia Mineiro Martins

domingo, 13 de outubro de 2013

Memórias da Ribeira

Vivi a infância e a adolescência na Ribeira
e sempre que circulo no bairro 
observo cada pedacinho dele,
o que mudou e o que continua quase igual,
me vejo dobrar esquinas, 
ir à missa na Igreja do Rosário,
para rezar e arranjar paquerinhas,
comprar acarajé e abará em Joana,
fugir com a bike de minha madrinha
para pedalar entre os carros
em dia movimentado na Avenida Beira Mar,
tomar sorvetes de castanha e amendoim
na famosa Sorveteria da Ribeira ou
andar no Porto dos Tainheiros
por causa da vista que até hoje me encanta,
respirar aquele ar pacato de interior...
Catar papa-fumo na beira da praia, se a maré estivesse baixa,
para fazer uma moquequinha depois em casa...
Hoje vi que as pessoas ainda colocam cadeiras
nas portas de casa para ver gente passando
e lembrei da cadeira de madeira e lona listrada de minha avó,
da barraquinha de tico-tico, da goiabeira branca
onde eu subia até o olho para espionar a casa vizinha
e de onde eu me esgueirava por um galho
até o telhado da lavanderia de nossa casa,
onde eu ficava, horas e horas,
pensando em nada e na vida,
comendo goiabas até me empanturrar,
lendo a coleção de contos clássicos,
presente de meu padrinho,
ou escrevendo poemas e cartas a meu pai.
Havia ainda o balanço com cordas da feira de S. Joaquim,
finas demais, que após algumas chuvas logo apodreciam,
os cachorros, que nasciam e morriam sem parar, naquela casa,
os batizados e funerais deles, a marcação de todas as covas,
de Peteleca, Swatt, Duque, Lady e outros de que nem me lembro...
As baterias de lata improvisadas por mim e minha irmã,
os "planos" do dia traçados atrás do sofá, como trocar sal por açúcar
nos potes da cozinha, para fazer minha avó fazer almoço doce,
ou apimentar o pão de Rosa Malagueta, moça que trabalhou
na casa de meus avós e sempre me capturava pra minha avó me
dar cinturadas por debaixo da mesa com o cobro velho de meu avô...
A mania de ser "a sombra" de minha avó na cozinha,
o que me fez aprender a gostar de cozinhar...
As armações de Marizete com minha avó,
do tipo jogar pedras no corredor enorme da casa,
que hoje percebo pequeno demais,
para dizer que os espíritos do mal
estavam mandando eu e minha irmã ficarmos quietas...
A novela "Pai Herói", que virou personagem inventado por Marizete,
deixando de vez em quando sabonetes Pompom ou Mônica debaixo de minha cama, se eu me comportasse bem...
As histórias de assombração, onça cabocla, espíritos que habitavam
fechaduras, aparições de crianças dando aú, de coxos
e outros que a criatividade permitisse existir...
A turma do São José, o tobogã, o cachorro quente da cantina,
os meninos bonitinhos do Militar que iam pra porta de nossa escola
na hora da saída para nos paquerar e nós a eles...
E a repressão da escola: não pode vir maquiada,
só pode tênis azul marinho ou preto, e como resposta eu exagerava
um cortezinho de nada só para calçar hawaiana em um dos pés...
E a época do grupo de jovens da igreja da Boa Viagem?
Achava o coordenador um gato e por ele ia para as reuniões,
mas era seminarista...
nem sacava meus suspiros ou apenas os ignorava!
Tanta gente bonitinha circulando,
antes e depois da missa do domingo à noite,
um evento, até cantava no coral da missa naquela época...
E as lavagens do Bonfim?
Todo ano minha tia Fátima nos levava para a casa de Zezé,
pertinho da igreja, e ficávamos a tardinha e a noite circulando no largo, 

assistindo as bandinhas tocando no coreto...
As novenas de Santo Antonio, todos os anos, na casa de dona Didi,
minha tia sempre ganhava a imagem do santo,
mas nunca se casou (infelizmente)!
No 13o. dia, festança com comes e bebes intermináveis...
Vi hoje muitas crianças na rua, nos largos, parques,
revisitando sentimentos que moram em mim, no tempo da Ribeira.


Por Nisia Alejandra Rizzo de Azevedo